A Graça de Deus é um tema muito relevante para a vida da Igreja. Atualmente existem muitas interpretações a seu respeito. Porém, é importante ressaltar que a graça não nasce do advento da Nova Aliança. Ela não fala de um Deus severo que se tornou amoroso. Na verdade, ela sempre esteve presente, desde antes da fundação do mundo, pois a Graça se manifestou quando "o Cordeiro de Deus foi imolado antes da fundação do mundo (Ap 13.8)".
A Graça é o Dom de Deus
Anderson Bomfim descreve em uma de suas aulas da Plataforma Farol, que o "homem natural é incapaz de ter fé salvadora por si mesmo", por isso, é necessário que seja salvo pela graça que é o dom de Deus. Através do Evangelho e da atuação regeneradora do Espírito, "o homem é recriado para crer, se arrepender dos seus pecados e viver para boas obras de Cristo".
A Graça é unilateral, ou seja, é um ato exclusivo de Deus. Esta expressão que tem sua origem na palavra hebraica חן ( chen), significa favor, graça e aceitação. A sua raiz provém da palavra חנן (chanan) que significa mostrar favor, ser piedoso, tornar favorável, ser misericordioso. A primeira vez que a expressão aparece nas Escrituras é no livro de Gênesis.
Noé, porém, achou graça aos olhos do SENHOR. - Gn 6.8
A expressão "achou graça" significa nas palavras de Marcelo Miranda Guimarães "uma porção de uma dívida perdoada". Noé encontrou favor em um momento em que a maldade havia se multiplicado sobre a terra, pois "todas as imaginações do coração deles pendiam só para o mal", e por isso, Deus limitou a vida do homem à 120 anos (Gn 6.3-7). Zacarias de Aguiar Severa nos ensina que a "graça divina é a fonte de onde se promana [origina] a salvação." É um favor imerecido, que exclui qualquer ideia de mérito pessoal. É mais do que uma ação em favor do homem, pois é a manifestação da pessoa e da obra de Cristo.
"Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus." - Rm 3.23-26
Dietrich Bonhoeffer em seu livro Discipulado, aborda a existência de um tipo de graça barata, que em suas palavras significa "justificação dos pecados e não do pecador (...) a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado". A gratuidade da graça não significa que ela não teve um custo, pois a morte propiciatória de Cristo ocorreu em substituição a nossa. Cristo não nos representou na Cruz, ele nos substitui na cruz. Através de seu sangue, nos comprou para Deus, para que nós "que estávamos mortos em nossos delitos e pecados", sejamos vivificados e ressuscitados com Cristo, para que "assentados com Ele nas regiões celestiais", pudéssemos em Cristo "realizar as obras que de antemão ele preparou para que andássemos por elas", pois Nele fomos recriados para estas boas obras (Ef 2.1-10)
A Graça não anula a Lei, mas nos reposiciona na relação com a Lei.
Somente Deus consegue trabalhar pelo lado de dentro. Não podemos alcançar nem merecer a justiça do Reino de Deus: é uma graça concedida. - Richard Foster
A graça é gratuita mas custou a vida de Cristo. A graça não é um fim em si mesma, mas o meio pelo qual através de Cristo, somos justificados por Deus. A Graça não envolve permissão para vivermos de qualquer maneira. Por isso, como afirma Bonhoeffer, "a graça de Deus não é uma garantia de segurança aos homens em sua vida sem Deus".
O ensino herético da hiper graça é uma distorção da verdadeira Graça de Deus, pois coloca homem como o centro do universo, e estabelece o ser individual como a pessoa mais importante para Deus. Tem suas raízes nos ensino do luterano João Agrícola (séc.XVI), que pregava a indiferença para com a lei, a superioridade da fé e da graça. Nesta perspectiva, a Lei considerada má é abolida por Cristo. Mas Mateus descreve que Cristo veio cumprir a Lei. Enquanto abolir significa destruir, cumprir traz a ideia de executar com exatidão. E na mesma porção Cristo afirma que a justiça dos discípulos deveria exceder a dos escribas e fariseus (Mt 5.20). George Ladd também afirma que "a obra expiatória de Cristo não transforma a ira de Deus em amor, pois o amor de Deus é a própria fonte de reconciliação".
"Não podemos confundir pecado com pecados. Pecado é a atitude voluntária com respeito a Deus; pecados são os atos voluntários que são resultado do pecado. O pecado é a raiz mestra; pecados são resultado do pecado. O pecado é invisível até que se manifeste em pecados. Pecados não é o plural de pecado, mas, mais propriamente, a manifestação do pecado. Pecado é o que Deus vê; os pecados são os que os homens vêem. A avaliação de Deus sobre uma pessoa não é pelo que ela faz, mas pelo que ela é; portanto, a pessoa que põe o ego no lugar de Deus é um pecado, não importa como este pecado seja manifestado. O pecado é uma terrível realidade. É o destronamento de Deus. - Mary E.McDonough
Paulo não se contradiz quando afirma que a salvação é pela graça mediante a fé na pessoa de Cristo, e que esta afirmação não anula o significado de Lv 18.5 "guardem minhas leis e regras, se alguém as cumprir, terá vida por intermédio delas; eu Sou o Senhor". O que Paulo deixa bem claro, é que o papel da lei é revelar ao homem a sua incapacidade de cumpri-la, não porque ela é má, mas porque o coração do homem é mau. O homem sem Cristo já está sob a condenação da Lei, portanto, a fonte da condenação do homem não é a Lei em si, mas o pecado que adulterou a natureza do homem criado a imagem e semelhança de Deus.
Outrossim , o crente é comparado ao homem que está edificando uma casa , e sabe que ela será submetida a um teste de resistência .O crente é uma pessoa que deve ter a preocupação de observar a lei de Deus (...) mencionei a tendência fatal de se situar a lei e a graça como extremos opostos em um sentido errôneo . Se não estamos “ debaixo da lei ” , nem por isso somos dispensados da observância de seus princípios - Martin Lloyd Jones
Não é pela observância da lei que somos salvos, mas porque somos salvos devemos cultivar nossa vida a partir do parâmetro dos estatutos e mandamentos da Lei de Deus. A falta de correspondência aos princípios revela o quanto ainda temos uma perspectiva secular da vida cristã. Cristo afirma em Jo 14.21 que "aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, este é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele". Cristo nos ensina que toda a exigência da Lei foi cumprida por Ele, e mediante a graça de Deus somos reposicionados na nossa relação com a Lei.
Cristo revogou as leis cerimoniais, porque uma nova linhagem sacerdotal estava sendo levantada (Hb 7). Entretanto, redimensionou a lei civil e moral, estabelecendo um novo padrão a ser observado pelos discípulos (vide Sermão do Monte). A graça, nas palavras de Charles Swindoll não é "como um instrumento para justificar o pecado ou remover o sofrimento das consequências", mas justificados na pessoa de Cristo, podemos produzir frutos dignos de arrependimento, mesmo em meio a dolorosa colheita dos frutos de nossos erros e transgressões.
Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne da carne ceifará a corrupção; mas o que semeia no Espírito do Espírito ceifará a vida eterna. - Gl 6:7-8
É preciso destacar ainda, que para Timothy Keller, o Evangelho não é legalista e nem relativista, e de que a fé nunca permanece só, pois "a graça verdadeira sempre resulta em vidas transformadas, marcadas pela santidade e pela justiça".
A Graça e as Obras do Homem Regenerado
Assim como a obra da salvação não é do homem, mas é de Cristo, as boas obras só podem ser realizadas através da pessoa de Cristo.
Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça para comigo não foi vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus, que está comigo. - 1Co 15.10
Neste ponto, precisamos entender que a graça não envolve apenas a salvação, mas a condição para uma nova perspectiva sobre aspectos simples do dia-a-dia. Se o pão de cada dia fosse visto da perspectiva de uma dádiva diária, um fruto da graça de Deus, e não apenas do esforço pessoal, qual seria o impacto disto em nossa vida diária?
Neste ponto, a oração "Pai só me dê saúde porque o resto corro atrás" aparenta nascer de uma pessoa responsável e diligente, mas na verdade esconde a orfandade de um coração soberbo e autossuficiente. É uma frase de alguém que ainda não experimentou o fator da Graça de Deus na relação com o próprio Deus. Por isso, a oração "o pão nosso de cada dia nos dá hoje..." não é uma oração de irresponsáveis que sempre estão a espera de algo que caia do céu, mas de pessoas que compreendem que o pão de cada dia é uma expressão da graça generosa de Deus.
Outro ponto que envolve a Graça é compreendermos que o trabalho como mandamento é um culto a Deus, e não apenas um mecanismo para suprir as nossas necessidades. Através do trabalho temos a oportunidade de manifestarmos os atributos de Deus, em tudo o que fazemos a Deus em favor do outro, sendo portanto, uma oferta integral a Deus, a partir de um coração inteiro na relação com Deus.
Por isso, pessoas sacerdotais não trabalham porque vendem seu tempo em troca de sua sustentabilidade, mas trabalham porque todo seu tempo é dedicado a Deus, pois Ele é a porção do sacerdote. Isto não significa trabalhar de maneira gratuita, porque o obreiro é digno do seu salário, mas significa reposicionar o trabalho ao lugar que lhe é devido.
"Assim também o homem deve e tem que trabalhar e realizar algo, sabendo, porém, que alguém outro o alimenta e não o seu trabalho, ou seja a rica benção de Deus; ainda que posas parecer que é o trabalho que lhe dá sustento, porque sem trabalho Deus nada concede (...) o pão não é mérito nosso, é bondade de Deus". - Dietrich Bonhoeffer.
A cultura Mobilizadora do Reino de Deus
A graça é mobilizadora porque promove um deslocamento de indivíduos. Nela, encontramos o chamado feito por João Batista e Cristo a multidão "arrependam-se, porque é chegado o Reino dos Céus" (Mt 3.2; 4.17), e também elevado a um novo nível, quando foram chamados para a jornada do discipulado - "Vem e segue-me" (Mt 9.9) -, bem como, quando enviados em seu Nome - "vão e façam discípulos" (Mt 28.19-20)
E aconteceu que, indo eles pelo caminho, lhe disse um: Senhor, seguir-te-ei para onde quer que fores. E disse-lhe Jesus: As raposas têm covis, e as aves do céu, ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça. E disse a outro: Segue-me. Mas ele respondeu: Senhor, deixa que primeiro eu vá enterrar meu pai. Mas Jesus lhe observou: Deixa aos mortos o enterrar os seus mortos; porém tu, vai e anuncia o Reino de Deus. Disse também outro: Senhor, eu te seguirei, mas deixa-me despedir primeiro dos que estão em minha casa. E Jesus lhe disse: Ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus - Lc 9.57-62
Apesar da salvação não nos custar nada, o caminho do discipulado nos custará tudo. Este é o fator mobilizador da graça de Deus, porque é um chamado a deixarmos tudo para segui-lo, é o processo de tomarmos a nossa cruz para o seguirmos, para onde quer que Ele vá. Enquanto, como afirma Bonhoeffer, "o mundo sonha com o progresso, com o poder, com o futuro, os discípulos sabem do fim, do juízo e da vida do reino dos céus para o qual o mundo esta nada apto".
Nicodemos (Jo 3) não conhecia a salvação pela Graça, por isso falava do que não ouvia, e testemunhava do que não via. Assim como a graça, a fé também é um dom de Deus, para que em fé possamos responder a graça de Deus. Mas a Graça não é um ato isolado, mas é o meio pelo qual compreendemos a cultura mobilizadora do Reino de Deus.
O que é excitante sobre o reino é que ele não pode ser adiado! Ele está cheio de poder. Nas duas últimas décadas, temos visto o governo do reino para a próxima estação de Deus na dimensão terrena. O povo do reino entende da graça do reino, porque o reino é governado pela graça e pelo amor, não por normas, regulamentos e leis. Deus tem designado administradores do reino para cada época. (Ef 4.11-13) Todo reino tem uma cultura. Devemos representar a cultura do reino com o qual estamos alinhados. O reino de Deus está cheio da Sua glória. Nós nos movemos de glória em glória. Estamos sendo posicionados a fim de fazermos a transição para a próxima dimensão da glória. Chuck Pierce
O chamado para a jornada do discipulado é uma convocação para um processo de transformação, a partir de um novo modelo referencial, de novas práticas de vida, e de um novo padrão de convivência social. Landa Cope afirma que a "essência do discipulado é o desenvolvimento do homem interior", e Bonhoeffer complementa afirmando que "através do discipulado, aprendemos a nos relacionar corretamente com Cristo". Por isso não existe o auto-discipulado pois o discipulado é formativo e legislativo.
Infelizmente, na igreja brasileira é muito comum se deparar com uma distorção do discipulado, como um controle emocional e comportamental do discipulador sobre os "seus" discípulos. Nós não temos nossos discípulos, mas atuamos como facilitadores do processo de formação de discípulos de Cristo. Caminhamos com aqueles que estão respondendo ao chamado, porque assim como Paulo, temos o compromisso de sentir as dores de parto, até que Cristo seja formado no interior daqueles que disseram "Sim" ao chamado para segui-lo.
Conclusão
Se estamos em uma missão com DNA mobilizador, porque em alguns momentos de nossa vida estamos estagnados em nossos dilemas pessoais?
Será que ainda somos afetados pela cultura de Babel, tentando tocar os céus a partir de nossas obras?
Será que realmente estamos respondendo a mobilização da graça que coloca no processo formativo do discipulado?
Será que por ventura, não estamos como os discípulos no caminho de Emaus, procurando outras alternativas por causa da frustração pessoal?
Será que estamos entre os discípulos, procurando-o no passado onde ele não está mais?
Será que estamos tão temerosos por salvar nossa vida, que estamos escondidos em um lugar seguro?
Será que ainda não vivenciamos a realidade do Reino dos Céus, com a qual Nicodemos foi confrontado?
Estamos em Quaresma, um período de 40 dias que antecede a Páscoa, o período em que a Graça de Deus foi manifestada aos homens. Mas antes da cruz, João Batista e Cristo anunciaram a mensagem de arrependimento, por que o Reino havia chegado.
O Reino em movimento mobiliza arrependimento. O arrependimento é a principal maneira de se corresponder à graça de nosso Deus. - Marcelo Souza
O reino não pode ser conseguido por ambição. Tiago, João e Judas, todos foram confrontados pelo Senhor quando tentaram operar na ambição mundana em meio ao plano do Seu reino. João e Tiago se submeteram. Judas nunca se submeteria. Em outras palavras, ele tornou-se um filho do mundo das trevas. Sua vida terminou prematuramente sem qualquer conexão com Aquele que o havia discipulado. - Chuck Pierce
Aqueles que trilharam a jornada do discipulado, os quais "deixaram tudo para ganhar tudo que tem valor real, pelo qual não fizeram nada por merecer" - Victor Sandeberg -, são enviados em missão pelo Senhor da missão. Por isso, quaresma nos coloca em uma estação de revisão de nossa vida, de nossa jornada de fé e de nossa relação com Cristo. Se não estamos respondendo a esta jornada mobilizadora, devemos imediatamente nos atentarmos as palavras de Cristo a Igreja de Éfeso.
Lembra-te, pois, de onde caíste, e arrepende-te, e pratica as primeiras obras; quando não, brevemente a ti virei e tirarei do seu lugar o teu castiçal, se não te arrependeres. - Ap 2.5
Para finalizar, acreditamos que é tempo de arrependimento de nossas obras infrutíferas, para que mediante a graça de Cristo, possamos ver os frutos das obras de Cristo, sendo manifestadas em nós, para a glória de Deus Pai e louvor da Glória do Seu Nome.
Vamos juntos!
Referencia Bibliográfica
- Guimarães, Marcelo Miranda. A Torá - Bereshit, No Princípio, Genêsis. Belo Horizonte: Ames, 2006.
- Severa, Zacarias. Manual de Teologia Sistemática. Curitiba: AD Santos; 1999.
- McDonough, Mary. O plano de Deus para a Redenção. Traduzido por João A.F.Barros - São Paulo: Editora dos Clássicos; 2008.
- Ladd, Georde Eldon. Teologia do Novo Testamento. Tradução de Degmar Ribas Junior. São Paulo: Hagnos, 2003.
- Bomfim, Anderson. Plataforma Farol in https://mobcollab.com/course/farol-schoolab
Lloyd-Jones, D. Martyn. Estudos no sermão do monte. Editora Fiel: Edição do Kindle, 1982.
Keller, Timothy. A Igreja Centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no evangelho. Tradução: Eulália P. Kregness - São Paulo, Vida Nova: 2014
Pierce, Chuck D. Interpretando os Tempos. 2a Edição, Tradução Dra. Maria Eugênia S.Fernandes. Editora Shofar, São José dos Campos, 2008.
Swindoll, Charles R. Davi: Um Homem Segundo o Coração de Deus; Tradução por Neyd Siqueira - São Paulo: Mundo Cristão, 1998.
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